Páginas

terça-feira, 24 de maio de 2011

Moralidade nos RPGs



Há alguns meses atrás, quando foi publicado meu artigo “ A Apologética do RPG ” , no qual defendo teologicamente a prática do RPG frente à restrição doutrinária de alguns meios cristãos ao hobby, foi feito um comentário que me chamou muita atenção. Um leitor, que gostou do artigo, alegou que este atingiria mais ainda o objetivo se fosse realçado que o discurso dos Jogos de Interpretação de Papéis sempre coloca os jogadores “contra o mal”.

Não creio que isso faltou no meu trabalho (por motivos que explicarei mais adiante). Todavia, a observação do leitor me chamou muito a atenção. Será mesmo que o RPG é “contra o mal”? Independente da resposta, há possibilidade de compreender qual moralidade os RPGs buscam transmitir, se é que o fazem?
Este artigo se propõe a justamente discutir isto. E o assunto é pertinente, pois há quem defenda veementemente a idéia de que os RPGs de alguma forma influenciam negativamente o comportamento dos jovens e dos adolescentes. Normalmente, estes mesmos críticos também consideram que os videogames e certos tipos de filmes tem efeitos igualmente negativos. Mas a questão, neste caso é: os RPGs propõem ou são capazes de desvirtuar comportamentos e a moral? A resposta é importante tanto para aqueles que gostam de jogar quanto para os demais que estão procurando entender melhor o que é RPG antes de criticá-los.
1 – De qual moralidade estamos falando?
Antes de qualquer coisa, é preciso compreender o que é moralidade para, depois, buscá-la nos RPGs. Quem falou diretamente sobre moralidade foi Lawrence Kohlberg [1] que integrou os conceitos de Piaget e os descreveu em três níveis. O primeiro nível é o da moralidade pré-convencional, no qual a punição e a obediência aos pais são fatores determinantes; o segundo nível é o da moralidade da conformidade ao papel convencional, no qual a criança tenta conformar-se com o fim de obter aprovação e manter boas relações com os outros; o terceiro é o mais alto nível é o da moralidade dos princípios morais auto-conceitos, no qual existe obediência as regras, com base em uma noção de princípios éticos e no qual podem ser feitas exceções ás regras, sobre certas circunstâncias.
Este terceiro nível é deveras importante para nossa análise, pois é nele que estão tanto os autores como a maioria esmagadora dos jogadores de RPG. Neste nível (no qual normalmente não se chega antes dos 13 anos), as pessoas agora reconhecem conflitos entre os padrões morais e fazem seus próprios julgamentos com base nos principio de correção, imparcialidade e justiça. Constrói-se, portanto, um padrão próprio do individuo com relação ao que é “certo” ou “errado”, “aceitável” ou “inaceitável”, “puro” ou “imundo”.
Observa-se, portanto, que as questões do que é “bom” ou “ruim”, “sagrado” ou “profano” sempre será variável de grupo para grupo e, mais intrinsecamente, de individuo para individuo. É, portanto extremamente subjetivo e impossível determinar universalidade em sua definição, muito menos aplicação.
Todavia, ainda que a questão seja extremamente subjetiva, aliais justamente por este motivo, os Jogos de Interpretação de papéis podem trazer, em seu discurso e proposta, visões próprias do que seria a moralidade dentro do paradigma em questão.
É exatamente por este motivo que deliberadamente não conjurei o fato de que os Jogos de RPG propõem uma visão de “bondade e justiça” no artigo “A Apologética do RPG”: a moral judaico-cristã é buscada, vivida e praticada pelas igrejas e seus componentes, mas não necessariamente o que o cristianismo prega é uma moralidade aceita e consensual por todas as pessoas. Por exemplo, o cristianismo considera a fornicação (sexo fora do casamento) como algo reprovável, ao passo em que a maioria das pessoas (alguns, inclusive, auto-intitulados cristãos) não vê nada de errado nisso. Desta forma, seria infrutífero dizer que “RPG é contra o mal” para justificá-lo dentro da Teologia, já que esta pauta a determinação de valores dentro das Escrituras, não do senso comum de uma parte da sociedade (e vice-versa).
Além desta subjetividade da moralidade, é preciso discutir outra questão. Há um conceito relativamente bem difundido de que televisão, cinema, games e RPGs são capazes de influenciar a formação do caráter de jovens e adolescentes levando-os a agressividade e comportamentos anti-sociais. Entretanto, tais teorias estão sendo fortemente questionada. Para citar um exemplo, pesquisas recentes sobre o efeito dos videogames realizadas nos Estados Unidos não só derrubam a idéia de que este passatempo leva crianças e jovens a comportamentos reprováveis como também demonstram que a capacidade de cognição de quem joga é melhorada [2] .
Compreendidos tanto a subjetividade da moralidade no ser humano quanto a possibilidade desta de ser direcionada pela mídia, vamos compreender como esta é tratada pelos Jogos de Interpretação de Papéis.
2  - Existe moralidade nos jogos de RPG?
Sabemos que a moralidade é subjetiva e que, ainda assim, os indivíduos muitas vezes se permitem a “exceções à regra”. Esta subjetividade ocorre também no RPG no nível de proposta: cada autor propõe um conjunto de valores baseado nos clichês e elementos literários de cada cenário [3] e provavelmente nos valores dele próprio. Para compreendermos estas nuances, é preciso recorrer a uma análise comparativa do discurso de cada Jogo de Interpretação de Papéis. Obviamente, não é possível falar de todos, e, ainda que talvez existam exceções, creio que citar alguns dos mais famosos seja um bom demonstrativo.
Comecemos pelo clássico D&D – Dungeons & Dragons (COOK e WILLIAN, 2001). A moralidade aqui está bem óbvia e regulada pelo sistema de Tendências. Todos os jogadores devem selecionar uma Tendência para seus personagens: elas giram em torno da combinação do conceito de ordem/neutralidade/caos com bem/neutralidade/mal. Desta forma, um personagem pode ser, por exemplo, caótico e bom (faz o bem e é abnegado, mas não se importa com regras rígidas ou com leis), ordeiro e maligno (egoísta, não se importa com os outros e usa as leias para oprimir, reprimir ou atingir seus interesses), ou neutro e ordeiro (obedece as leias pelas leis, sem se importar demasiadamente com benignidade ou maldade) entre outras equações [4] :
[...] Em termos gerais, a moral e a atitude pessoal de uma criatura ou personagem estão representadas por sua tendência: leal e bom, neutro e bom, caótico e bom, leal e neutro, neutro caótico e neutro, leal e mau, neutro e mau (veja a tabela 6-1: Tendência das Criaturas, Raças e Classes para verificar as tendncias preferidas de algumas criaturas, raças e classes) [...] [5]
Apesar das combinações de maldade na Tendência, observa-se que o D&D não permite e desencoraja que jogadores criem personagens maus. As combinações permitidas na criação de personagens são: Ordeiro e Bom, Neutro e Bom, Neutro, Ordeiro e Neutro:
[...] Escolha uma tendência para seu personagem, usando raça e classe como guia. Os personagens normais são bons ou neutros, nunca maus, tendências malignas são para vilões e monstros. [...] [6]
A moralidade, desta forma, enraíza-se na Tendência que, além de direcionar o comportamento do personagem, também se reflete nos efeitos de inúmeras magias, monstros, etc. Esta limitação claramente impõe uma moralidade aos personagens criados: eles serão cumpridores das leis e defensores da justiça ou indivíduos praticantes da bondade, o que, no jogo D&D, geralmente implica em abnegação e heroísmo para proteger inocentes.
Vampiro: a Mascara é possivelmente o RPG onde a moralidade foi mais conjurada. Os personagens deste jogo são vampiros que, consumidos por um sentimento predatório irracional (chamado de “Besta”), mantém em um instável controle de seus instintos cultivando valores humanitários como benignidade, caridade, respeito etc. Perder toda a Humanidade (característica que mede o quanto o vampiro apega-se a seu lado humano) significa perder o personagem e ter que criar outro para continuar jogando (ACHIlLI, 1998, pg. 221). Como no caso do D&D, uma visão de moralidade é conjurada e proposta, inclusive sendo medida pelo sistema de regras [7] .
Outros jogos da Linha Narrativa da White Wolf (mesma empresa do jogo Vampiro: a Máscara) também trazem visões particulares de moralidade. Para citar alguns, Lobisomem: o Apocalipse invoca a lealdade além de uma mentalidade ecológica e ambiental. Mago: a Ascensão trata da liberdade e da responsabilidade. Aparição: o Limbo coloca os personagens dos jogadores em situações nas quais devem vencer o lado negro que existem em cada um de nós [8] .
No jogo GURPS a definição da moralidade dos personagens gira em torno, basicamente, de suas Desvantagens, que são características destinadas a limitar o personagem de forma física, social ou psicológica, concedendo pontos de bônus para que sejam aprimoradas outras características do mesmo. Desta forma, existem Desvantagens como “vício”, “luxúria”, “avareza” entre outras, que debilitam ao personagem (JAKSON, 1994, capítulo 5). O fato destas características consensualmente reprováveis gerarem efeitos nocivos no personagem já é um demonstrativo de que são elementos desencorajados para a vida dos jogadores.
Há também as chamadas “boas desvantagens” como honestidade e código de honra. Algum crítico poderia considerar que chamar tais características de “desvantagens” seria um mau exemplo. Nada mais errôneo. O GURPS considera tais características desvantagens simplesmente porque elas limitam o personagem, que deve portar-se com caráter. Isto é um tanto óbvio: as vezes é difícil (embora sempre necessário) agirmos com nobreza. Além disso, esta é uma maneira de recompensar, com pontos, personagens construídos para serem virtuosos:
[...] pode parecer estranho que virtudes como Honestidade e Senso do Dever estejam relacionadas como “desvantagens”. Na maioria dos sentidos estas características são vantagens. No entanto, estas virtudes limitam sua liberdade de ação. Uma pessoa honesta, por exemplo, terá problemas em mentir, mesmo que seja por uma boa causa.
Por este motivo, várias virtudes são tratadas como desvantagens dentro da estrutura do jogo. Esta é uma característica importante. Você não terá que assumir nenhum defeito na personalidade de um personagem que você queria criar totalmente heróico. Você pode conseguir pontos extras escolhendo aquelas desvantagens que são, na verdade, virtudes! [...] [9]
Desta forma, observa-se que os RPGs, em sua maioria, constroem um discurso moralista e até mesmo moralizante [10] . Os personagens dos jogadores defendem, ao máximo que se possa afirmar de temas tão subjetivos quanto estes, os ideais de bondade e de justiça. Estes mesmo personagens podem ter defeitos como “alcoolismo”, “luxúria”, “avareza” “desejo de vingança” ou “cabeça quente”, mas pelo fato de que tais características são tratadas pelos livros como “falhas”, “desvantagens” ou “defeitos” já demonstra que os autores dos livros não enxergam tais comportamentos como insalubres e reprováveis. Ouso dizer, portanto, que o RPG é o mais politicamente correto possível dentro de sua própria proposta, sendo os jogadores encorajados a seguir tais valores.
Isto posto, mesmo que um entretenimento como o RPG fosse determinante na moral e caráter de um individuo, e já foi demonstrado neste trabalho que este poder dos jogos e da mídia é algo muitíssimo discutível do ponto de vista de especialistas no assunto, o RPG somente poderia transmitir uma formação politicamente correta e de superação do que é considerado “mal” e “injusto”, já que os personagens dos jogadores são encorajados (as vezes, exortados) a vencerem seus defeitos e males internos e externos.
Como isto se transmite às mesas de jogo?
Já foi exposto neste trabalho que os RPGs, de uma forma geral, propõem que os personagens interpretados pelos jogadores sejam indivíduos de caráter que procuram superar o que é mal e reprovável. As histórias propostas giram em torno deste conflito interno, do combate a um vilão ou destes dois elementos imiscuídos.
Entretanto, pode-se afirmar que, no andamento do jogo em si, tais elementos se traduziriam em perfeita consonância com o discurso dos livros? Em outras palavras, quando joga-se RPG, esta moralidade é invocada e trazida pelo Narrador e pelos Jogadores?
Infelizmente, não. Independente de qual seja o discurso e sua origem (neste caso, os livros de RPG) ele nem sempre produz ou reproduz o efeito para o qual é destinado, e muito menos pode ser avaliado como a palavra final sobre a prática do assunto em questão [11] . Desta forma, os autores dos RPGs propõem um modelo de moralidade, mas a aplicação do mesmo caberá aos jogadores (que são os receptores deste discurso).
Isto não é nenhuma surpresa. O Narrador exerce uma função complexa dentro de uma “partida” de RPG [12] . Ele cria uma história interativa, da qual os jogadores vão participar com seus personagens e interpreta o elenco que irá interagir com eles, além de determinar desafios a serem vencidos por estes mesmos personagens (usando os dados para medir se foram bem sucedidos ou não) [13] . Os jogadores, por seu turno, criam um personagem fictício permeado de competências e fraquezas, e (normalmente) atravessado por várias questões sociais e psíquicas (aliais, como todos nós, seres humanos, somos). Implica dizer que, com relação à prática em si, é o Narrador e os jogadores quem definem a questão da moralidade (como praticamente tudo dentro do grupo e do jogo). Obviamente, o RPG, seja ele qual for, normalmente direcionará até certo ponto a maneira como será o jogo, mas, no fim das contas, são os participantes quem darão a forma final ao quesito moralidade, como é entendida e aplicada nas “partidas”.
Tal questão se torna muito mais acentuada se relembrarmos algo que já foi dito neste trabalho: que a moralidade é algo subjetivo e variável de individuo para individuo. Isto obviamente influencia a maneira como cada autor irá tratar o tema em seus livros, mas, sobretudo, influencia a maneira como os jogadores irão criar e vivenciar seus personagens. Nem sempre o personagem do jogador é um espelho fidedigno dele (na verdade, ele raramente é), mas, sem duvida alguma, sempre será um reflexo nítido de como tal jogador pensa e sente como pessoa . Por exemplo, a maioria das pessoas tem noção do amor que uma mãe sente por seu filho, mas uma jogadora que por acaso é mãe representaria isto de uma forma bem diferente de outra jogadora que não é e, obviamente, de um jogador homem. Uma pessoa religiosa pode levar a interpretação de um personagem clérigo a um nível muito mais profundo, ou talvez não se sentir bem com isso preferindo outros personagens. Em ambos os casos, foi projetado no jogo aquilo que estes jogadores são como pessoas.
O papel do Narrador na questão é ainda mais crucial. Afinal, ele usa o cenário, cria histórias, tramas e outros personagens que vão interagir com os dos jogadores. O Narrador como pessoa exercerá uma influencia enorme sobre os conflitos psicológicos e sociais (ou seja, morais) e inevitavelmente o caráter dele será plenamente refletido nas “partidas”. É impossível fazer dissociações totais neste aspecto.
Estas distinções entre “o que o RPG quer dizer” e “como ele é aplicado na prática” são deveras importantes. Implica dizer que, se a moralidade proposta pelos autores dos o RPGs é desvirtuada ou não é seguida, tal responsabilidade cabe tão somente aos jogadores, não ao RPG em si. Obviamente, não se pode generalizar, já que cada grupo de RPG é uma construção social única e irreprodutível. Novamente, se ocorre algum desajuste (na forma de resistência ou perversão ao discurso moral dos autores dos livros), este recai sobre as pessoas e a maneira como elas decidiram divertir-se com este jogo, não sobre o passatempo que, por ele mesmo, é inofensivo e, reafirmo, politicamente correto.
A maldade, quando ela ocorre, está nas pessoas, não nos RPGs. E qualquer pessoa dotada de bom senso sabe que as generalizações são absurdas e preconceituosas. Portanto, julgar o RPG e todas as pessoas que gostam dele pela atitude de um ou outro grupo em particular é no mínimo falta de sabedoria, para não dizer discriminação.
Conclusão
Os RPGs propõem que os jogadores sejam heróis e que vençam o “mal”, seja ele interno (os próprios defeitos do personagem) ou externo (na figura de um vilão). Além disto, a moralidade é algo relativo e subjetivo, não passível de generalização. Soma-se a estes dois fatos a ausência de prova cientifica de que as mídias são realmente determinantes na formação do caráter dos indivíduos, e verifica-se de que o RPG não induz os jogadores a atitudes reprováveis. Os que assim procedem, o fazem devido tão somente a seu caráter, não ao RPG.
O RPG é uma diversão como qualquer outra: futebol, sair pra dançar, cinema. Todas estas cosias podem ser utilizadas de forma pervertida e gerar resultados prejudiciais, mas, nestes casos, o problema está nas pessoas, não nos objetos.

Silva Pacheco
Mestre em História Comparada (UFRJ)
e Professor de Sociologia e História de Israel
nos Seminário Teológico Nova Filadélfia
e Seminário Teológico Nova Esperança.

Bibliografia
ACHILLI Justin. Vampiro: a Máscara. São Paulo Devir 1999.
COOK Monte, TWEET Jonhathan, WILLIAN Skip. Dugeons & Dragons: Livro do Jogador. São Paulo, Devir: 2001.
Diane E. Papalia e Sally Wendkos Olds. Desenvolvimento Humano. São Paulo: Artmed, 7° Edição.
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
HAGEN, Mark Hein. Mundo das Trevas. São Paulo: Devir, 2006, pg. 94.
HEINSOO Rob, COLLINS Andy e WYATT James. Dugeons & Dragons: Livro do Jogador. São Paulo: Devir, 2009.
JACKSON Steve. GURPS. São Paulo Devir 1994.
R. TALSORIAN GAMES. Castelo Falkenstein. Devir. São Paulo 1998.
______. Ciberpunk 2020. São Paulo Devir 1996.

***

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fala Aventureiro!